Entre Adão e todos nós: a herança da queda sob a lente do realismo teológico.

Introdução
A doutrina do pecado original constitui um dos pilares fundamentais da teologia cristã, suscitando debates intensos ao longo dos séculos sobre como o pecado de Adão se transmite à humanidade. Entre as diversas abordagens desenvolvidas para explicar este mistério teológico, a Teoria Realista emerge como uma das mais antigas e complexas tentativas de compreensão.
Também conhecida como Teoria da Liderança Natural, esta corrente teológica propõe uma explicação audaciosa: todos os seres humanos estavam literalmente presentes em Adão e, portanto, participaram efetivamente de sua transgressão. Esta teoria não apenas influenciou profundamente o desenvolvimento da teologia cristã, mas também gerou controvérsias que perduram até os dias atuais.
Desenvolvimento
A Teoria Realista encontra suas raízes teológicas em pensadores como Tertuliano, que defendia o traducionismo – a concepção de que a alma é transmitida biologicamente junto com o corpo durante a geração. Esta base filosófica permitiu a elaboração da ideia de que as almas humanas estavam organicamente presentes em Adão, participando realmente de sua queda.
No entanto, foi Agostinho de Hipona quem desenvolveu e sistematizou esta teoria com maior clareza e profundidade. Embora não fosse um traducionista convicto, oscilando entre esta visão e o criacionismo da alma, Agostinho construiu sua doutrina sobre uma estrutura metafísica fundamentada no Neoplatonismo, especialmente no Realismo Platônico.
Segundo esta perspectiva filosófica, as ideias representam realidades ontológicas superiores que preexistem às suas manifestações particulares. Aplicando este conceito à antropologia, Agostinho postulou que toda a humanidade constituía uma única ideia realizada em Adão – uma natureza comum à qual todos os seres humanos pertencem. Consequentemente, a queda de Adão representou uma queda verdadeiramente universal.
A Doutrina da Participação e Culpa
O núcleo da Teoria Realista reside na afirmação de que todos os seres humanos pecaram efetivamente em Adão, ainda que de forma inconsciente. Esta doutrina do pecado pré-consciente estabelece princípios fundamentais que diferenciam esta teoria de outras abordagens teológicas.
Primeiramente, a culpa não é meramente herdada, mas ativamente assumida, pois todos pecaram naquele momento primordial. Em segundo lugar, a corrupção da natureza humana não constitui a causa da culpa, mas sim sua consequência – somos corruptos precisamente porque somos culpados. Finalmente, o pecado original transcende uma simples condição herdada, configurando-se como um ato coletivo no qual todos fomos agentes por participação na natureza comum da humanidade.
Esta interpretação encontra respaldo em textos bíblicos como o Salmo 51:5, onde o salmista declara: “em pecado me concebeu minha mãe”, e Hebreus 7:9-10, que demonstra como Levi, estando ainda “nos lombos de Abraão”, pagou dízimos a Melquisedeque. Este último exemplo ilustra o conceito de solidariedade representativa nos antepassados, fortalecendo a base bíblica da teoria.
A Questão Cristológica
Uma das objeções mais naturais e desafiadoras à Teoria Realista diz respeito a Jesus Cristo. Se todos estavam em Adão e nele pecaram, como explicar o nascimento sem pecado de Jesus, que também é descendente de Adão segundo sua natureza humana?
Agostinho resolve esta questão propondo que o pecado é transmitido através do ato sexual, realizado com concupiscência. Como Jesus nasceu da virgem Maria por obra do Espírito Santo, sem ato sexual, Ele teria herdado a natureza humana, mas sem a corrupção e sem culpa. Esta explicação, embora engenhosa, apresenta problemas significativos quando confrontada com possibilidades modernas de reprodução.
Se o pecado se transmite via concupiscência e não pelo ato sexual em si, permanece inexplicado por que indivíduos gerados artificialmente, como através de fertilização in vitro ou clonagem, ainda nasceriam em pecado.
Implicações Pastorais e Desenvolvimento do Pedobatismo
Um dos desdobramentos mais controversos da Teoria Realista foi sua defesa do batismo infantil. Agostinho argumentava que, se as crianças nascem culpadas e já condenadas, seria necessário batizá-las o mais rapidamente possível para salvá-las da condenação eterna. Esta teologia levou à oficialização do batismo infantil no Concílio de Mela em 416, presidido pelo próprio Agostinho.
Contudo, esta prática não encontra respaldo nas fontes mais antigas do cristianismo. O Didaquê e os escritos dos primeiros e segundos séculos não mencionam o batismo infantil, e Tertuliano chegou a condená-lo explicitamente. A defesa agostiniana do batismo infantil parece constituir, portanto, uma racionalização teológica posterior, e não uma herança apostólica autêntica.
Desenvolvimentos Medievais e Escolásticos
A Teoria Realista não desapareceu com Agostinho, sendo refinada por diversos pensadores medievais que contribuíram para sua evolução e adaptação.
João Escoto Erígena, no século IX, reforçou a ideia de que “todos preexistem em Adão”, mantendo-se fiel à linha platônica de pensamento.
Anselmo de Cantuária, no século XI, modificou a ênfase da teoria, localizando o pecado na vontade em vez da concupiscência, sustentando que a corrupção é consequência da vontade corrompida transmitida naturalmente.
Pedro Abelardo, no século XII, introduziu uma perspectiva diferenciada ao afirmar que o pecado só pode existir onde há vontade pessoal. Assim, as crianças não poderiam ser consideradas culpadas – ele nega a culpa herdada, embora aceite a corrupção da natureza humana.
Tomás de Aquino, no século XIII, realizou uma síntese notável ao conciliar Aristóteles e Agostinho. Sustentou que todos participam de uma “natureza comum” em Adão, mas adicionou que o pecado original reside na vontade, e sua transmissão ocorre apenas através do pai, pois este fornece a “virtude ativa” da geração. Esta visão deu origem à crença católica posterior de que Maria foi concebida imaculadamente, garantindo assim a pureza de Jesus.
Críticas e Limitações
A Teoria Realista enfrenta várias críticas significativas que questionam sua viabilidade teológica e pastoral. A principal dificuldade reside em conciliar a justiça divina com a ideia de que um ser humano possa pecar antes de ter consciência ou vontade própria. Esta questão levanta sérias implicações sobre a natureza da responsabilidade moral e da justiça divina.
Ademais, a teoria implica que Deus condena infantes à perdição eterna por uma culpa herdada inconscientemente, o que gera profundos questionamentos pastorais e éticos. A fragilidade da conexão entre o ato sexual e a transmissão do pecado torna-se ainda mais evidente à luz dos avanços modernos na reprodução humana, que a teoria original não consegue explicar adequadamente.
Finalmente, a dependência exagerada de um esquema metafísico platônico, não explicitamente revelado nas Escrituras, levanta questões sobre a legitimidade de fundamentar doutrinas teológicas centrais em filosofias humanas específicas.
Conclusão
A Teoria Realista do pecado original representa uma tentativa teológica ambiciosa e complexa de resolver o problema da universalidade do pecado e da culpa através de uma explicação ontológica radical. Ao propor que todos pecaram em Adão porque todos estavam literalmente nele, esta teoria articula uma teologia de solidariedade humana que busca levar a sério tanto a universalidade do pecado quanto a seriedade da queda.
Seu mérito histórico reside na tentativa corajosa de enfrentar questões teológicas fundamentais e na profunda influência que exerceu sobre o desenvolvimento da doutrina cristã, especialmente no catolicismo e na teologia reformada. A teoria demonstra a capacidade da mente teológica de buscar explicações sistemáticas para mistérios profundos da fé cristã.
Entretanto, ao fazê-lo, a Teoria Realista esbarra em sérias objeções bíblicas, filosóficas e pastorais que limitam sua aceitação universal. As dificuldades em conciliar justiça divina com culpa inconsciente, os problemas levantados pelos avanços na reprodução humana, e a dependência de estruturas filosóficas específicas constituem desafios significativos à sua viabilidade.
pesar de sua complexidade e influência histórica indiscutível, esta teoria não permanece incontestável. O reconhecimento de suas limitações levou muitos teólogos posteriores, inclusive dentro da tradição protestante, a desenvolver abordagens alternativas – como o Federalismo e a Teoria da Condicionalidade da Culpa – na tentativa de manter o realismo do pecado original sem as dificuldades inerentes ao modelo agostiniano. Assim, a Teoria Realista permanece como um marco importante na história da teologia, mas não como a palavra final sobre este mistério teológico fundamental.
Esta publicação integra a série “DOUTRINAS FUNDAMENTAIS: O PECADO ORIGINAL“, um estudo aprofundado sobre um dos pilares teológicos do cristianismo. Para acompanhar todos os artigos desta série e construir uma compreensão completa sobre esta doutrina essencial, acesse o índice completo clicando no botão abaixo.
Uma resposta para “A Teoria Realista do Pecado Original”
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