A Remonstrância de 1610: Vozes de Resistência no Coração da Reforma

O manifesto que desafiou os dogmas calvinistas. A Remonstrância delineou cinco pilares doutrinários e consolidou o Arminianismo como uma vertente teológica distinta no cenário protestante.

A Remonstrância foi um documento teológico crucial, escrito em 1610, por seguidores e simpatizantes de Jacó Armínio. O documento surgiu de um contexto de intensa disputa teológica na Igreja Reformada Holandesa, logo após a morte de Armínio em 1609, servindo como uma resposta direta às acusações de heresia feitas pelos calvinistas ortodoxos.

Contexto e Motivação

Aproximadamente 43 pastores e teólogos arminianos uniram-se com um propósito claro: defender as suas doutrinas diante de crescentes pressões e acusações. Os calvinistas criticavam severamente as interpretações arminianas sobre salvação, especialmente os conceitos de predestinação condicional e graça resistível.

A conferência em Gouda, na Holanda, em 1610, foi o palco para a apresentação oficial deste documento. O seu objetivo era esclarecer os pontos doutrinários arminianos e promover uma possível reconciliação.

Cinco Pontos Doutrinários

O documento abordou cinco pontos fundamentais de divergência teológica, que definiram as bases do Arminianismo:

  • Rejeição da eleição incondicional.
  • Contestação da expiação limitada.
  • Refutação da graça irresistível.
  • Afirmação da depravação total.
  • Defesa da possibilidade de apostasia.

A ênfase principal recaía sobre dois conceitos: a eleição condicional, que se baseia na presciência divina, e a graça preveniente, que capacitaria todos os seres humanos a responderem ao Evangelho.

Desdobramentos Históricos

Apesar das intenções de reconciliação, a Remonstrância não conseguiu acalmar os conflitos. Os calvinistas continuaram a acusar os arminianos de enfraquecer a soberania de Deus e de se aproximarem do pelagianismo.

O auge desta controvérsia ocorreu no Sínodo de Dort (1618-1619), onde os remonstrantes foram formalmente condenados e banidos das Províncias Unidas.

O Legado da Remonstrância

Embora rejeitada oficialmente, a Remonstrância estabeleceu-se como um documento fundamental do Arminianismo. Definiu os pontos doutrinários essenciais e serviu como base para o desenvolvimento posterior desta corrente teológica protestante.

O documento consolidou o Arminianismo como uma vertente teológica distinta. A Remonstrância de 1610 não foi apenas um documento de contestação, mas uma expressão corajosa de convicções bíblicas e doutrinárias em meio a intensos conflitos.

Mais que uma resposta aos dogmas calvinistas, foi um testemunho de fé e de liberdade teológica.


Confira agora os 5 artigos que foram defendidos pelos Remonstrantes:

Artigo 1

Deus, por um eterno e imutável decreto em Jesus Cristo, seu Filho, antes de ter lançado os fundamentos do mundo, decidiu salvar, dentre a raça humana caída em pecado, os que – em Cristo, por causa de Cristo e através de Cristo – por meio da graça do Espírito Santo, creriam nesse seu Filho, e que, pela mesma graça, perseverariam até o fim nessa fé e obediência de fé; mas, por outro lado, decidiu deixar os impenitentes e descrentes sob o pecado e a ira, condenando-os como alheios a Cristo, conforme a palavra do Evangelho de João 3.36 “Aquele que crê no Filho tem a vida eterna, mas aquele que não crê no Filho não verá a vida, mas a ira de Deus sobre ele permanece”, e também conforme outras passagens da Escritura.

Artigo 2

Em concordância com isso, Jesus Cristo, o Salvador do Mundo, morreu por todos e por cada um dos homens, de modo que obteve reconciliação e remissão dos pecados para todos por sua morte na cruz; porém, ninguém é realmente feito participante dessa remissão exceto os crentes, segundo a palavra do Evangelho de João 3.16 “Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito, para que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna” e a Primeira Epístola de João 2.2 “E ele é a propiciação pelos nossos pecados e não somente pelos nossos, mas também pelos de todo o mundo.”

Artigo 3

O homem não possui fé salvadora por si mesmo, nem a partir poder do seu livre-arbítrio, visto que, em seu estado de apostasia e de pecado, não pode, de si e por si mesmo, pensar, querer ou fazer, algo de bom (que seja verdadeiramente bom tal como é, primeiramente, a fé salvífica); mas, é necessário que Deus, em Cristo, pelo seu Espírito Santo, regenere-o e renove-o no intelecto, nas emoções ou na vontade, e em todos os seus poderes, a fim de que ele possa corretamente entender, meditar, querer e prosseguir no que é verdadeiramente bom, como está escrito em João 15.5 “porque sem mim nada podeis fazer.”

Artigo 4

Esta graça de Deus é o princípio, o progresso e a consumação de todo o bem, tanto que nem mesmo um homem regenerado pode, por si mesmo, sem essa precedente ou preveniente, excitante, prosseguinte e cooperante graça, pensar, querer ou terminar qualquer bem, muito menos resistir a quaisquer tentações para o mal. Por isso, todas as boas obras e boas ações que possam ser pensadas, devem ser atribuídas à graça de Deus em Cristo. Mas, em relação ao modo de operação dessa graça, ela não é irresistível, visto que está escrito sobre muitos que “resistiram ao Espírito Santo” (Atos 7) e em muitos outros lugares.

Artigo 5

Aqueles que são incorporados em Cristo por uma fé verdadeira, e consequentemente são feitos participantes do seu Espírito vivificante, são abundantemente dotados de poder, para que possam lutar contra Satanás, contra o pecado, contra o mundo e contra a sua própria carne, e ganhar a vitória. Contudo, sempre (queremos que seja bem entendido) com o auxílio da graça do Espírito Santo, Jesus Cristo os ajuda, pelo seu Espírito, em todas as suas tentações, estende-lhes as suas mãos, apoia-os e fortalece (caso estejam prontos para lutar, queiram o seu socorro e não desistam de si mesmos), de modo que, por nenhum engano ou poder sedutor de Satanás, possam ser arrebatados das mãos de Cristo, conforme o que Cristo disse em João 10.28 “ninguém as arrebatará da minha mão”. Mas, se eles não são capazes de, por descuido, τὴν ἀρχὴν τῆς ὑποστάσεως χριστοῦ καταλείπειν (esquecer o início de sua vida em Cristo), de novamente abraçar o presente mundo, de se afastar da santa doutrina que uma vez lhes foi entregue, de perder a sua boa consciência e de negligenciar a graça; isto deve ser assunto de uma pesquisa mais acurada na Sagrada Escritura, antes que possamos ensinar com πληροφορία (inteira persuasão) de nossas mentes. Esses artigos, assim definidos e ensinados, os Remonstrantes consideram estarem de acordo com a Palavra de Deus, idôneos para edificação, e, no que diz respeito a este argumento, suficientes para a salvação, de modo que não é necessário ou edificante acrescentar ou diminuir qualquer coisa.



A Remonstrância de 1610 não foi apenas um documento de contestação, mas uma expressão corajosa de convicções bíblicas e doutrinárias em meio a um cenário de intensos conflitos eclesiásticos. Mesmo rejeitada oficialmente pelo Sínodo de Dort, sua influência perdurou, moldando o Arminianismo como uma vertente legítima e consistente dentro da tradição protestante. Mais que uma resposta aos dogmas calvinistas, foi um testemunho de fé, liberdade teológica e busca pela verdade revelada nas Escrituras.

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