Por qual motivo necessitamos de salvação? Qual é a real situação do coração humano perante Deus? Essas questões reverberam ao longo da história da teologia cristã, e no cerne de diversas respostas encontramos uma doutrina essencial e, em alguns casos, polêmica: a Depravação Total.
Esse conceito procura explicar a profundidade e a abrangência da corrupção em nossa natureza após a Queda no Éden. Essa doutrina, longe de ser um ponto final, é o início de uma discussão interessante sobre como a graça de Deus age em nós. Vamos investigar os pontos de vista mais relevantes sobre o assunto.
O Coração da Questão: Depravação Total ou Parcial?
O debate histórico nos oferece duas perspectivas principais quando se trata do grau de corrupção da natureza humana.
- Depravação Total
Essa é a perspectiva tradicional sustentada tanto por arminianos quanto por calvinistas. Ela sustenta que toda a humanidade herdou uma natureza espiritualmente corrompida devido ao pecado de Adão.
- O que quer dizer “total”? Neste contexto, “total” não indica intensidade (como se fôssemos tão maus quanto poderíamos ser), mas sim extensão. Isso implica que o pecado impactou todas as áreas do nosso ser: mente, sentimentos, vontade e corpo.
- A principal consequência: nesse estado, estamos espiritualmente “mortos”, impossibilitados de buscar a Deus, de agradá-Lo ou de dar início à nossa própria salvação. Em relação às coisas espirituais, nossa vontade está aprisionada e perdida, precisando de uma ação divina para ser libertada.
2. Depravação Parcial
Esta perspectiva, muitas vezes associada ao Semipelagianismo, sustenta que a corrupção herdada de Adão foi apenas parcial.
- O que foi mantido? De acordo com essa perspectiva, o livre-arbítrio não foi completamente destruído pela Queda. Uma “centelha” de habilidade espiritual teria sido mantida, possibilitando que o ser humano inicie o caminho em direção a Deus (o chamado initium fidei, ou “início da fé”).
- A dinâmica da salvação: Apesar de ainda necessitar da graça de Deus para todo o processo, o indivíduo poderia começar a responder ao chamado divino por iniciativa própria. Arminianos e calvinistas se opõem fortemente a essa perspectiva.
Como o Pecado se Espalha? As Teorias da Transmissão
Se a maioria das correntes protestantes aceita a Depravação Total (a incapacidade humana), a pergunta central torna-se: de que maneira o pecado e a culpa de Adão foram transmitidos a todos nós? Neste caso, as explicações diferem consideravelmente.
Teoria Realista (ou da Liderança Natural)
Por séculos, essa perspectiva predominou na igreja ocidental, sendo sistematizada por Agostinho e sustentada por personalidades como Lutero, Calvino e até mesmo Jacó Armínio.
A ideia principal é que todos os seres humanos estavam “seminalmente” (ou biologicamente) presentes em Adão. Assim, quando ele pecou, todos nós pecamos nele. Herdamos sua natureza corrupta e sua culpa de maneira natural, assim como herdamos traços físicos.
Teoria Federal (ou Representativa)
Esta é a vertente predominante do protestantismo atualmente. Ela vê a conexão de Adão com a humanidade de maneira legal, em vez de biológica.
A ideia principal é que Adão atuou como nosso “cabeça federal” ou representante legal em uma espécie de pacto com Deus, conhecido como “Aliança das Obras”. Ao romper essa aliança, a responsabilidade de seu ato foi atribuída (imputada) a todos por quem ele era responsável — isto é, a toda a humanidade. Essa culpa atribuída resulta em nossa natureza depravada.
Teoria Arminiana-Wesleyana (Variação do Federalismo)
Elaborada por John Wesley, essa teoria acrescenta um elemento fundamental à perspectiva federal, concentrando-se na obra de Cristo como o “segundo Adão”.
A ideia principal é que a culpa do pecado de Adão é universalmente anulada pela obra redentora de Cristo. Ninguém nasce culpado pelo pecado de Adão por causa de Jesus. Contudo, ainda herdamos a natureza pecaminosa (a depravação), que nos induz a praticar nossos próprios pecados. É por essas transgressões pessoais que nos tornamos culpados. Essa perspectiva reforça a importância da Graça Preveniente, uma dádiva divina que atua em todos, recuperando o livre-arbítrio para que possamos optar pela fé.
Teoria da Depravação Apropriada Voluntariamente (TDAV)
Esta corrente arminiana, apreciada por diversos teólogos pentecostais e nazarenos, faz uma distinção clara entre a herança da natureza e a herança da culpa.
A ideia principal é que herdamos de Adão apenas sua natureza corrompida, não sua culpa. Nascemos com uma propensão significativa ao pecado, porém só nos tornamos culpados perante Deus quando, de forma inevitável, sucumbimos a essa inclinação e praticamos nosso primeiro ato pecaminoso pessoal. Quando a aceitamos com nossa vontade, a depravação passa a ser “nossa”.
Teoria da Imputação Mediada
Esta é a perspectiva mais complexa e menos frequente, apresentada pelo teólogo Josué de la Place.
A ideia principal: Deus cria a alma humana de forma pura. Contudo, ao se integrar ao corpo (descendente de Adão), ela se torna corrupta e culpada. O pecado de Adão é, assim, atribuído de maneira indireta (mediada) por meio das leis naturais da propagação. A principal objeção a essa teoria é que ela sugere que Deus associa uma alma pura a um corpo que a corromperá.
Conclusão
Compreender a doutrina da Depravação Total é investigar a condição humana para, posteriormente, reconhecer a grandeza da cura proporcionada pela graça divina. Como observamos, mesmo entre os que concordam com o diagnóstico, as explicações sobre como “contraímos” essa condição diferem bastante.
Essas teorias influenciam nossa percepção sobre a justiça divina, o livre-arbítrio e a soberania da graça. E você, de que maneira essa doutrina influencia sua perspectiva sobre fé e salvação?

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