Entendendo o Livre-Arbítrio, a Presciência e a Soberania na Teologia Arminiana
Explorar os principais debates da teologia pode parecer uma tarefa desafiadora, mas no cerne de muitas dessas discussões está uma questão essencial: como a soberania absoluta de Deus se concilia com a liberdade de escolha humana? Uma resposta que procura respeitar ambos os lados dessa questão é oferecida pela teologia arminiana. Vamos explorar três fundamentos desse raciocínio: o livre-arbítrio, a presciência divina e a soberania de Deus, e entender como eles criam uma tapeçaria teológica consistente.
1) O Pilar do Livre-Arbítrio Humano
A teologia arminiana inicia reconhecendo a existência do livre-arbítrio, visto como um atributo fundamental que Deus outorgou aos seres racionais. Essa não é uma ideia inédita; as Escrituras estão cheias de convites para a escolha. Deus apresenta a Israel a vida e a morte, e ordena: “escolhe, pois, a vida” (Deuteronômio 30:19). De maneira semelhante, Josué desafia o povo: “escolhei hoje a quem sirvais” (Josué 24:15). A lógica é simples: as recompensas e punições divinas só são válidas se nossas ações forem resultado de uma escolha autêntica.
O Impacto da Queda e a Graça que Precede
Contudo, nossa habilidade de optar pelo bem espiritual foi profundamente afetada após a Queda no Éden. O apóstolo Paulo é claro ao retratar a condição humana, declarando que “não há quem entenda; não há quem busque a Deus” (Romanos 3:11) e que estávamos “mortos em nossos delitos e pecados” (Efésios 2:1). Em nosso estado natural, somos espiritualmente incapazes de buscar a Deus por nossa própria iniciativa.
É precisamente aqui que um conceito fundamental do arminianismo surge: a graça preveniente. Essa é uma graça que “precede”, uma ação divina que se manifesta em todas as pessoas. Isso representa o cumprimento da promessa de Jesus: “E eu, quando for levantado da terra, atrairei todos a mim” (João 12:32). Essa graça recupera a habilidade da vontade humana, permitindo-nos atender ao chamado de Deus. A capacidade de dizer “sim” a Deus não é inata, mas um presente divino. Deus não nos obriga, mas nos habilita a fazer escolhas de forma livre.
2) A Onisciência Divina: Saber Não É Determinar
Como é possível que Deus conheça o futuro sem comprometer nossa liberdade de escolha? O arminianismo defende a presciência total de Deus. Como afirma o salmista: “Ainda a palavra me não chegou à língua, e tu, SENHOR, já a conheces toda” (Salmos 139:4). Deus tem conhecimento de todas as coisas antes de acontecerem, porém esse conhecimento não é a causa delas.
Aqui, fazemos uma distinção crucial:
- Presciência Causativa: A ideia de que Deus sabe o futuro porque Ele o determinou.
- Presciência Não-Causativa: A ideia de que Deus sabe o futuro porque Ele é onisciente e vê o que acontecerá, incluindo as escolhas livres.
O arminianismo adota a perspectiva não-causativa. A Bíblia ilustra isso em trechos que apresentam “futuro contingente condicional”. Em 1 Samuel 23:11-13, Deus informa a Davi que os habitantes de Queila o entregariam a Saul caso ele permanecesse na cidade. No entanto, esse evento nunca ocorreu, pois Davi, com base nessa revelação, optou por deixar o local. Da mesma forma, Jesus expressa tristeza pelas cidades que não se arrependeram, declarando que, se os milagres realizados ali tivessem ocorrido em Tiro e Sidom, “há muito se teriam arrependido” (Mateus 11:21). Deus tinha conhecimento de um futuro provável que nunca se materializou.
Para esclarecer isso, os teólogos recorreram a três formas de conhecimento divino:
- Conhecimento Natural: O entendimento que Deus possui acerca de Si mesmo e de todas as coisas que podem existir.
- Conhecimento Livre: a compreensão do que Ele escolheu criar e realizar.
- Conhecimento Médio (Scientia Media): o entendimento do que seres livres fariam em qualquer situação possível (“o que aconteceria se…”).
Apesar de o arminianismo aceitar a ideia de conhecimento médio, ele se distingue do molinismo ao declarar que Deus não utiliza esse conhecimento para controlar situações e definir cada ação humana, principalmente no que diz respeito à salvação. Ao fazer isso, Deus seria considerado coautor do pecado e a sinceridade do amor humano seria anulada.
3) A Soberania de um Deus Bom e Justo
A teologia arminiana sustenta com firmeza a soberania total de Deus. Ele “age conforme sua vontade no exército do céu e entre os habitantes da terra; ninguém pode impedir sua mão” (Daniel 4:35). Contudo, a soberania de Deus sempre se manifesta de acordo com Seu caráter.
Deus é completamente santo, justo e amoroso. Isso implica que existem coisas que Ele, por Sua própria essência, “não pode” realizar. Ele é o Deus “que não pode mentir” (Tito 1:2) e “que não tenta ninguém” (Tiago 1:13). Suas escolhas são livres, porém sempre orientadas por Sua natureza perfeita. Ele atua de maneira persuasiva, não coercitiva. Ele é a origem de tudo, porém, de maneira soberana, decidiu incorporar o livre-arbítrio humano em Seu plano. Isso pode ser observado em passagens que conectam a ação divina à responsabilidade humana, como em Filipenses 2:12-13: “…operai a vossa salvação com temor e tremor; porque Deus é o que opera em vós tanto o querer como o efetuar, segundo a sua boa vontade”.
A Harmonia Perfeita: Tecendo a Tapeçaria
Como essas três doutrinas se harmonizam sem contradição?
- Livre-Arbítrio e Presciência: A presciência divina não interfere no livre-arbítrio, pois Deus tem conhecimento do futuro contingente. Ele tem consciência do que faremos de forma espontânea, sem necessidade de nos obrigar a isso.
- Livre-Arbítrio e Soberania: Na Sua soberania, Deus optou por criar seres livres. Sua soberania se revela ao oferecer salvação a todos, uma vez que “deseja que todos os homens sejam salvos” (1 Timóteo 2:4), respeitando a resposta de cada indivíduo.
- Presciência e Soberania: A soberania divina é tão imensa que Deus não necessita estabelecer cada pormenor para manter o controle. Seu entendimento completo de todas as escolhas livres já faz parte do Seu plano eterno.
Conclusão
Em resumo, a perspectiva arminiana refuta um determinismo estrito no qual Deus predefine cada pensamento e ação. Em vez disso, ela propõe uma perspectiva em que Deus estabelece muitas coisas, mas concede ao ser humano a capacidade de exercer um verdadeiro livre-arbítrio libertário. Essa visão procura mostrar um Deus que é completamente soberano e, ao mesmo tempo, profundamente relacional, um Deus que reina sobre tudo, mas que convida cada indivíduo a responder de forma livre e genuína.
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